PORQUE O TELEJORNALISMO ESNOBA A AMÉRICA LATINA?
Já são mais de 100 mortos em protestos contra o governo. O país que há pouco mais de uma década era um dos mais ricos do continente graças às imensas reservas de petróleo hoje vive uma catástrofe politica e social.
O governo populista de Nicolas Maduro, apoiado nas forças armadas, engendra uma constituinte numa eleição pra lá de duvidosa, e o congresso diz que não vai acatar. O desabastecimento leva multidões aos mercados vazios em busca de comida.
A polícia age com mão de ferro nas ruas, grupos reagem turbinando ainda mais o conflito.
A Venezuela está em dramática ebulição. E a crise no nosso vizinho só tende a piorar.
Precisa mais para fechar a pauta e mandar uma equipe para lá?
Pois é. Mas para as redes de TV brasileiras, parece que só existe a Lava Jato e o cai-não-cai do Temer.
No noticiário internacional, salvo alguma tragédia, só as bravatas do Trump e os foguetes do rocambolesco ditador norte-coreano parecem dignos de atenção.
É inacreditável que nestas últimas semanas em que a escalada da crise na Venezuela atingiu níveis só comparáveis aos tempos em que as ditaduras grassavam pela América Latina, apenas o SBT teve a iniciativa de acionar uma correspondente baseada em Buenos Aires para conferir in loco a situação.
Globo, Band, Record e Rede TV, até agora, pelo menos, se dão por satisfeitas com matérias compradas de agências de notícias, convertidas em notas curtas e superficiais.
A WEB OCUPANDO ESPAÇO DAS EQUIPES IN LOCO
O pouco caso das emissoras brasileiras com o que acontece em nossos vizinhos vem crescendo desde o começo dos anos 2000. Até então, coberturas de grandes acontecimentos na Argentina, Uruguai, Paraguai, etc, eram rotina.
Trabalhei nesta época no Núcleo Globo da RBSTV. Eu e outros colegas fomos enviados várias vezes para cobrir eleições, impasses políticos e econômicos que repercutiam no Brasil, e até tragédias.
Além de gerar matérias via satélite a tempo para o telejornal do dia, muitas vezes fizemos links ao vivo. Em algumas coberturas mais impactantes, a Band gaúcha , a pedido da rede, também enviava equipes.
Eleições na Argentina, com Jair Alberto
Costumávamos brincar que o pessoal da Globo achava que Buenos Aires ficava a 100km de Porto Alegre, tantas foram as vezes em que nos pediram matérias de última hora na capital argentina.
A partir de 2002, as coberturas feitas pelas afiliadas próximas ao Cone Sul foram rareando até parar. A Globo passou a apostar em correspondentes fixos baseados em Buenos Aires, utilizando equipe técnica local contratada por matéria. O projeto teve repórteres como Ari Peixoto , Delys Ortiz e outros . Mas a experiência durou pouco tempo.
A internet passou a ser a grande ferramenta. Correspondentes freelance passaram a ocupar o espaço, gerando conteúdos via computador em casa mesmo. Quando havia necessidade de imagens, as agências forneciam o material.
Eduardo Mendes nos tumultos em Buenos Aires, 2001
Outra prática passou a ser o uso de depoimentos de pessoas comuns via internet. A produção da emissora rastreia na área do fato brasileiros que presenciaram ou estiveram perto do acontecimento, e eles mandam seus relatos via webcam ou smartphones.
Se por um lado a web trouxe uma instantaneidade que muitas vezes seria impossível devido à complicada logística de enviar uma equipe em tempo, por outro a ausência de repórteres e cinegrafistas brasileiros tarimbados cobrindo os acontecimentos criou um distanciamento inédito da realidade nos países vizinhos, soterrando a cultura jornalistica construída em muitas coberturas internacionais.
Com Marcelo Theil. Montevideo, 2000.
Apesar das redes manterem correspondentes e boas estruturas nos EUA, Europa e até no Japão, a América Latina acabou sendo solenemente abandonada.
E a economia de gastos passou a ser a justificativa para o escancarado desdém das emissoras brasileiras pelo que acontece aqui ao lado.
A falta de compromisso com os fatos, evidenciada na falta de atenção pelo que acontece na Venezuela é uma prova definitiva de que nosso telejornalismo precisa repensar a forma como vê o mundo.