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A PAUTA IMPOSSÍVEL E A GRANDE HISTÓRIA PERDIDA

Sabe aquela pauta especial, nascida de uma boa sacada, que você vem acalentando há tempos, compra a briga e finalmente consegue realizar?

Pois é, a gente fica tão obstinado em fazer tudo acontecer da melhor maneira possível, dentro do tempo e do orçamento, e acaba não dando a devida atenção a fatos inesperados que surgem durante o trabalho de campo.

Algumas vezes esta distração pode gerar grandes arrependimentos pela oportunidade desprezada.

São mancadas que doem, mas que também ensinam. Burradas que ajudam a apurar nosso senso, nosso faro, quando nos damos conta do erro cometido.

Bueno, vamos lá. A história é meio comprida mas é boa, garanto!

Foi em agosto de 1993. Eu, o repórter cinematográfico Edison Silva e o auxiliar técnico Umberto Durand estávamos na Antártica, no auge do inverno. O pior período do ano para se estar no lugar mais gelado do planeta. Época em que nem os pingüins aguentam ficar por lá. Eles migram para águas mais amenas ao norte.

Eu tinha passado seis meses batalhando pela matéria. Sendo repórter da RBSTV, uma emissora regional, eram poucas as chances de que a pauta fosse aceita pela chefia, pois envolvia altos custos em diárias, ficar fora da escala por vários dias, e por um assunto que em princípio não se encaixava na pauta local.

Naqueles dias começava a fervilhar no mundo todo a discussão sobre o aquecimento global e suas funestas consequências.

A Antártica era o melhor lugar para tratar disso. E havia brasileiros trabalhando por lá desde o início da década de 80. Eu tinha que emplacar esta pauta!

TORNANDO VIÁVEL A PAUTA IMPOSSÍVEL

Prevendo que a pauta seria recusada pela chefia, armei uma estrategia, confesso, um tanto ladina.

Como eu já havia conseguido aprovação da Marinha (que coordena o Programa Antártico Brasileiro) para a cobertura, negociando sozinho por meses a fio com o ProAntar sem que a emissora soubesse, tratei de “vender” a pauta antes de dizer á chefia do telejornalismo que eu tinha sinal verde do Governo para ir á Antártica.

Na época eu ainda não integrava o núcleo de repórteres de rede, ou seja, não tinha bala na agulha para propor uma pauta nacional deste porte. Mas discuti o projeto com a Celina Canabarro, editora do Nucleo Globo da RBSTV e sugeri que oferecesse a reportagem para o Fantástico.

Ela não perdeu tempo e a Globo topou na hora.

Com esse respaldo, fui então ao Roberto Appel, diretor de telejornalismo. Apresentei o projeto, destacando o aval da Globo para o Fantástico.

Para reforçar meus argumentos, inclui no projeto a produção de uma edição especial do Projeto Ecologia, programa semanal de reportagens especiais da RBSTV voltado para o meio ambiente.

Appel não gostou nada de saber que eu já tinha armado tudo por conta própria, mas depois de me passar uma bela bronca pela ousadia, deu o ok.

CHEGANDO NO INFERNO GELADO

Um sacolejo de freada indicou que o Hércules C.130 da FAB acabava de estacionar na pista coberta de gelo da base aérea Teniente March, área de pouso do Chile na Península Antártica, que serve de apoio aos brasileiros.

Dentro do avião, já estávamos todos de pé, numa fila ansiosa que se estendia pelo amplo compartimento de carga onde viajamos meio amontoados com mais uns 40 militares e pesquisadores.

Ao receber sinal verde do comandante pelos fones, um tripulante abre a porta e começa a gritar, impaciente:

"Bora, bora, tem que fechar o avião! Saiam logo, vamos,vamos!"

Somos os primeiros a desembarcar. Minha retina sofre um impacto imediato ao se ajustar à brancura intensa que invade meus olhos. Um clarão de doer!

A temperatura era de 8 graus negativos. Mas a sensação térmica passava dos 20 abaixo de zero.

O vento açoitava o rosto de uma forma como eu nunca havia sentido antes. O frio castigava tanto a pele que só dava para falar expondo a boca ao ar livre por alguns segundos, puxando a touca “ninja”que fazia parte do uniforme fornecido pela Marinha para aquelas condições tão severas.

Por cima da touca usávamos um gorro acolchoado que envolvia toda a cabeça e ainda óculos escuros do tipo que se usa em estações de ski. O resto do modelito Antártica era composto por um macacão, botas para neve, luvas grossas e um casacão com emblema do Proantar no peito. Tudo feito com material para baixíssimas temperaturas. E por baixo, generosas camadas de cuecões, camisetas e blusões de lã.

Com os pés fincados no gelo, chegava a hora de honrar os seis meses de planejamento e fazer a pauta render o máximo.

E SE O EQUIPAMENTO NÃO AGUENTAR?

Nossas câmeras Sony Beta nunca haviam sido usadas em condições tão extremas. Sabíamos que temperaturas negativas "chupam" rapidamente a carga das baterias e podem congelar instantaneamente os mecanismos delicados do vt (gravador) da câmera.

Também eram altamente prováveis danos aos componentes eletrônicos e às engrenagens lubrificadas das lentes. Não tínhamos informações de experiências anteriores em que pudéssemos nos basear.

Vendo o misto de deslumbramento e incerteza nas nossas caras diante daquele incrível mundo novo, um oficial veterano do ProAntar se aproxima e meio gritando no vento felicita nossa equipe.

- Parabéns, seus loucos! Vocês são a primeira equipe de tv brasileira a gravar nesta época do ano. Os outros sempre vem no verão!

Normalmente as reportagens são feitas nos meses mais quentes, quando se pode chegar lá nos navios de pesquisa e passar semanas naquele ambiente hostil, mas em temperaturas bem mais suportáveis.

Com média de 4 graus positivos no verão, se pode circular com mais conforto e segurança pela região e também admirar toda a fauna local. Mas no inverno, a temperatura em alguns lugares da Antártica ( como os picos mais altos) pode chegar a mais de 70 abaixo de zero e com ventos devastadores.

Para nós não teve jeito. Foi a única chance que tivemos no disputadíssimo programa Antártico Brasileiro. Era pegar ou largar.

Fomos encaixados num dos chamados vôos de apoio, operações periódicas em que a FAB transporta equipamentos, viveres e equipes substitutas de militares e pesquisadores.

Esta ponte aérea entre o Brasil e o fim do mundo é único jeito de manter a base funcionando, pois fora do verão o mar congela e os navios brasileiros, que não são do tipo quebra-gelo, não conseguem se aproximar da costa.

Tivemos pouco tempo para o deslumbre inicial de quem subitamente se vê diante daquele ambiente fantástico.

Meu olhar agora era para o repórter cinematográfico Edison Silva, que tentava acionar o equipamento. Se a câmera não funcionasse por causa do frio, estaria tudo perdido.

Foram segundos de gelado suspense, literalmente!

Gritando com a voz abafada pela touca, ele confirma exultante:

- Tá funcionando, tá funcionando!! Só não sei até quando. Vamos gravando tudo o que der."

Fizemos as primeiras imagens gerais do cenário e tratei de gravar uma passagem para ter pelo menos esta caso o equipamento sucumbisse.

Temendo que as baterias perdessem carga por causa da temperatura, cada um de nós enfiou duas ou três dentro das grossas roupas, além das fitas.

Nossa esperança de chegar até a base brasileira Comandante Ferraz acabou soterrada pelo vento forte incessante e a neve que não parava de cair.

Ferraz fica a cerca de 22km de onde estávamos. Com o mar congelado, só poderíamos chegar lá de helicóptero ou a bordo dos veículos especiais para aquele ambiente, um misto de caminhão com trator de esteiras.

Mas o clima ficou tão ruim que os chilenos apressadamente guardaram o helicóptero no hangar. Voar naquele aparelho pequeno com tempo assim seria arriscado demais.

Os pesquisadores e militares brasileiros que vieram no nosso vôo ficariam com os chilenos até o tempo melhorar, o que poderia levar dias.

Mas nós tínhamos que voltar ao avião em menos de 3 horas, prazo para a decolagem de volta ao continente. Só nos restava aproveitar o tempo da melhor forma e usar cada segundo para render matéria.

SUANDO ABAIXO DE ZERO

A sede da base chilena ficava a 4 km da pista de pouso. Todos foram para lá em veículos. Nós decidimos ir a pé e gravar tudo que desse no meio do caminho.

Fizemos uma sequência de imagens e entrevista com o biólogo gaúcho Antônio Batista, que colhia amostras da rala vegetação antártica numa área rochosa. Depois seguimos em frente, caminhando penosamente com neve até os joelhos, pela estrada que a gente só sabia que estava alí porque era marcada por balizas vermelhas nas margens.

Com a cabeça cheia de informações que garimpei em meses de pesquisa da pauta, fui gravando passagens pelo caminho.

Seguimos em frente, sempre dentro dos limites das balizas. É expressamente proibido sair da trilha, porque a neve cobre tudo e esconde as temíveis gretas, buracos profundos cobertos por uma fina camada de gelo que se quebra se alguém pisar.

Risco de morte que faz parte do dia a dia neste mundo gelado.

Um veículo cheio de pesquisadores passa buzinando, oferecendo carona. Sinalizamos que seguiríamos a pé até a base. Devem ter pensando " brasileiros malucos!"

Começo a ficar preocupado em não produzir material suficiente para o que planejamos. O fato de não podermos ir à base brasileira por causa do mau tempo desmontou boa parte da pauta. Até aquele momento só tínhamos um belo clip de imagens glaciais e alguns depoimentos colhidos ainda no avião, além do material com o pesquisador gaúcho e passagens de repórter.

Como consolo, restava a base chilena para onde estávamos indo e o pessoal por lá, incluindo a turma do nosso voo.

Focados nesta previsão, aceleramos o passo. Fomos gravando tudo que bem ou mal se destacava naquela paisagem. O esforço do deslocamento a pé naquele ambiente era tão pesado que já estávamos suando por baixo de todas aquelas roupas.

Pra piorar, não tinha nada de fauna pra dar mais vida às imagens. Era tudo uma desolação branca infinita.

Mas de repente...

- Olha lá, olha lá!!

Edison apontou para uma gaivota perdida que surgiu voando baixo. Um bicho! Finalmente um bicho! Ele fez contorcionismo para acompanhar aquele rasante rápido, num esforço desesperado para registrar aquele raro sinal de vida animal.

- Ufff, Consegui!

Edison estava triunfante com o registro daquela aparição.

- Maravilha, mas vamos lá que precisamos muito mais!

O vento gélido que metralhava finos flocos de gelo na nossa cara fazia com que cada frase soasse confusa, exigindo repetições aos berros.

Olhando para um agrupamento de galpões a uns 300 metros da margem direita da estrada, observei uma pequena mancha escura que se movia no meio da brancura. Tirei a viseira para ver melhor e percebi um ser humano tentando vencer a neve para nos alcançar na estrada.

Ele vinha abanando de longe, com gestos agitados.

O ENCONTRO COM OS ESQUECIDOS DA GUERRA FRIA

Uns dez minutos depois o homem conseguiu nos interceptar na estrada.

Estava tão ofegante quanto angustiado.

Falava nervosamente um idioma incompreensível, em que de vez em quando dava para perceber alguma palavra em inglês, mas que não fazia sentido. Tentei falar em inglês mas ele não conseguiu responder. Falava sem parar.

Me pareceu soar como russo, embora eu não entendesse nada. Mas o enorme gorro de pele farta que ele usava reforçou minha suspeita.

O sujeito, barbudo e enrrugado começou então a fazer sinais para que o acompanhássemos até os galpões de onde saiu. Insistia muito, como se precisasse de socorro.

Olhei para meus dois colegas:

- Acho que a gente vai ter que ir até lá. Pode ser uma emergência!

Edison e Umberto concordaram, embora preocupados, como eu ,com o pouco tempo que nos restava e com o tanto que ainda tínhamos que produzir.

À medida em que nos aproximávamos das instalações do homem, percebíamos que o lugar estava bastante depauperado. Era um pequeno conjunto daqueles galpões em forma semi-cilindrica enterrados na neve, com várias partes da cobertura de metal soltas e balançando ruidosamente na ventania.

O barbudo nervoso ia á nossa frente sempre gesticulando muito para que o seguíssemos e repetindo sem parar algo que eu supunha ser um “venham, venham!”

Ao entrar no galpão metálico encontramos outros dois barbudos, enfiados em roupas bastante desgastadas e com jeito de quem há tempos não encara um chuveiro. Um cheiro rançoso no ar reforçava o aspecto decadente do lugar.

Eram acomodações espartanas e bagunçadas, com móveis velhos e quebrados. Havia pilhas de equipamentos desativados pelos cantos.

Decadência era a palavra certa para descrever aquela realidade.

As estrelas vermelhas nas fardas, os emblemas com foice e martelo e os letreiros com caracteres esquisitos nas caixas de equipamentos confirmavam que estávamos em uma unidade russa. Uma combalida unidade russa.

Outro barbudo, grandalhão e muito sério, que conseguia se expressar um pouco em inglês explicou que alí funcionava uma estação de estudos meteorológicos. Mas a derrocada da União Soviética em 1991e a bagunça governamental que se seguiu acabou por deixá-los esquecidos na Antártica. Não receberam mais suprimentos nem substitutos.

Eram legítimos náufragos da URSS que afundou no mar revolto daqueles novos tempos.

Os três vinham sobrevivendo graças á ajuda de colegas das bases de outros países.

Na Antártica, único lugar do planeta onde nunca houve população humana nativa, existe uma solidariedade como em nenhuma outra parte do planeta. Um código de ajuda mútua que transcende fronteiras, religiões ou ideologias. E que é sacramentado em um tratado oficial obedecido por todos os países que fincam bandeira por lá.

Num canto do pavilhão, os russos montaram um “brechó” com roupas, alguns equipamentos e objetos pessoais para tentar juntar algum dinheiro até que um dia alguém viesse levá-los de volta para casa. Uma casa que já nem existia mais.

Ofereciam suas coisas com persistência de comerciante árabe, tentando arrancar alguns preciosos dólares daqueles três estranhos.

Mas nós, preocupados em poupar nossa mirrada diária, pressionados pelo relógio e pela pauta original, saímos dali minutos depois sem gravar um único take e sem gastar um cent.

Desprezamos de forma obtusa aquela que certamente seria a melhor história da viagem.

Meio sem jeito, nos despedimos dos russos, que demonstravam claro desapontamento nos olhando com desdém de quem fica pensando “babacas!”.

Concluímos as gravações na base chilena, entramos no Hercules no último minuto e nos dias seguintes gravamos mais alguns conteúdos na cidade chilena de Punta Arenas, onde ficamos aguardando o vôo de retorno ao Brasil. E foi só lá que me dei conta da história que tinha jogado fora.

A matéria sobre o aquecimento global e as pesquisas dos brasileiros na Antártica foi destaque no Fantástico. E o Projeto Ecologia ganhou o Prêmio da Associação Riograndense de Imprensa na categoria Programa Especial.

Mas até hoje lamento profundamente não ter feito a matéria com os russos abandonados. Lamento pela minha babaquice e pela fantástica história que desprezei.


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